Sábado, 20 de Junho de 2009

Poema datado

Reportagem

Aborrecido, passeio
Pelas ruas da cidade.
Deixei agora o Rossio
E atravesso o Borratém.
Deu meia-noite pausada
No Carmo. Um amigo meu
Passa e tira-me o chapéu.
Paro a uma esquina. Esmoreço
Numa saudade que surge
Dentro de mim não sei como:
Uma saudade infinita,
Misto de choro e revolta.
Alguém me chama no escuro:
Volto a cabeça. A uma porta
Um vulto mexe. - Sou eu!,
Não fuja, sou eu... - Mas quem?
Retrocedo, não conheço
A mulher que me chamou.
Na verdade ninguém ouve,
Ninguém distingue o apelo
Do amor que anda perdido
No mistério de mentir:
Deixo-a ficar onde estava;
Dou-lhe um cigarro e um sorriso
Dizendo que vou dormir.
Atira-me boa-noite
Num frio olhar de ofendida.
Meto à rua do Amparo
A perguntar se esta vida
Não terá finalidade
Menos sórdida e banal?
Atafonas. Uma Igreja.
Mais acima o Hospital.
Um marinheiro propõe
A esta que atravessou
A rua do Benformoso
Irem tomar qualquer coisa
Na Leitaria da Guia.
Ela pára. É uma catraia
Que talvez não tenha ainda
Dezasseis anos. Bonita.
Devagar vou-me chegando
Xaile, uma blusa, uma saia...
E oiço a fala dos dois.
Ele parece uma onda,
Impetuoso, alagante.
Ela é um breve bandó
Num corpito provocante.
E seguem... Ele, encostado,
Muito encostado e aquecido
Lá vai como se encontrasse
Um objecto perdido
Que foi milagre encontrá-lo...
Cortaram além!... E param?
Oiço o rebate de um estalo
E um grito subtil de prece
Amedrontada na fuga...
Desço ao Marquês do Alegrete.
Um candeeiro sinistro
Numa casa que se aluga...
Vejo um polícia. Arrefece.
Um grupo de três sujeitos
Discute o vinho de Torres.
Varrem as ruas. Um gato
Bebe água numa sarjeta;
Uma carroça parou
Carregada de hortaliça
Junto à Praça da Figueira.
Corto a rua dos Fanqueiros
Já um pouco estropiado...
Acendo um cigarro. A noite
Lembra um fantasma assustado...
Chego ao Terreiro do Paço.
O arco da rua Augusta
Parece mais imponente
Na minha desolação...
Vou até ao cais. Em baixo
O rio bate sem reacção...
A maré vasa. No céu,
Vão-se apagando as estrelas.
Um guarda-fiscal dormita
Na guarita, mas de pé.
Um velhote com um cesto
E uma lata vem dizer-me
Se eu quero beber café.
Num banco de pedra. Cismo.
E ali me fico a cismar
Em coisa nenhuma... O dia
Principia a querer ser
Mais um passo na incerteza
Das nossas aspirações...
As águas do rio a escutar
Parecem adormecidas...
E o dia nasce! Vem triste,
Nublado, fosco, cinzento,
Enquanto pela cidade
A vida acorda e desata
O matinal movimento...

 

 

ANTÓNIO BOTTO
NAS NOSSAS RUAS AO ANOITECER
Antologia de Poesia sobre Lisboa
Edições ASA
2001

 


publicado por weber às 00:35
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De Logros a 20 de Junho de 2009 às 02:12
Essa antlologia, não foi organizada pelo Mário Cláudio?
Gosto muito do António Botto. Aliás, junto com Pessanha era uma das grandes referências iniciais do Eugénio de Andrade.
O nosso J A continua a alumiar-nos com belas escolhas.
Só é pena que mais gente não venha aqui, tertuliar e fazer juz a este magnífico blogue. Fosse uma daquelas pesporrências literateiras, falasse ele de "Apitos" ou sectarismos pacóvios, ou ainda se se especializasse em sentimentalismos piegas, teria aí inúmeros comentários, daqueles cheios de "substância".

Até logo.

I.



De weber a 20 de Junho de 2009 às 13:08
Foi, sim senhora.
A Antologia é do grande "camilano" e grande escritor do Norte, Mário Claudio de seu pseudónimo.
Eu já tive outros blogues onde cavalgava o efémero, a espuma dos dias, mas cansei-me.
Hoje, a minha linha "editorial" é esta, que me dá muito prazer e que tem alguns "acompanhadores".
O ter a minha amiga como "leitora" das coisas que, eu, por aqui, lanço ao vento que passa, basta-me para sentir o meu labor recompensado.
O número, pouco se me dá!
Cada vez me sinto mais aristocrata (no sentido que os gregos dão ao étimo), elitista e do norte.
Obrigado.
Abraço,
J.A.


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